Carolina N. Curado Parrode
Escola Aldeia
Fátima Cristina Silva Moraes
Escola Aldeia
Resumo
Este artigo pretende apresentar “Cultores, Cantares e Festejos Populares”, projeto de Cultura Popular que acontece anualmente na Escola Aldeia e que envolve toda a comunidade. O tema trabalhado no ano de 2019 “Os avessos do avesso: Tropicália” propôs uma refinada experimentação da realidade na sua diversidade e complexidade. A educação como prática da liberdade em tentativas de remontar, reconstruir e construir o dinamismo que faz existir o Brasil e os seus brasileiros. O estar na escola como lugar do êxtase, do prazer, do perigo e da beleza que é viver. Através do tropicalismo e seus movimentos de ruptura, demonstrar como a fazer da escola pode contribuir para a formação e transformação de ideias e ideais de brasilidade. Desemparedar mentes e corações na descoberta do potencial libertador da educação, em sua forma mais poderosa: a vida. A existência entrelaçada pela historicidade dialético-dialógica humana tecida pelo tropicalismo, movimento de uma geração em efervescência.
Palavras Chave: tropicália, ruptura, liberdade.
(DES)EDUCAR PARA (DES)OPRIMIR: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Carolina N. Curado Parrode
Fátima Cristina Silva Moraes
O que existe de absoluto é o movimento, a transformação. A lógica da mente humana, muitas vezes, não permite que o ser humano haja frente à complexidade do mundo real em sua enorme velocidade de transformação e nos infinitos sistemas e fenômenos que o compõe. Por mais que se tente não se consegue reduzir esta multidimensionalidade a explicações simplistas, regras rígidas, e esquemas fechados de ideias. Isso significa o sucateamento e simplificação da própria existência humana. A realidade só pode ser entendida por um sistema de pensamento aberto, abrangente, reflexivo, flexível e sensível, o que configura uma nova visão de mundo, e consequentemente uma nova visão de educação. Uma educação que busca abranger as mudanças contínuas do real, sem negar sua multiplicidade e incertezas, numa concepção mais humana, que capacite a ver e viver melhor a verdade.
Assim, o pensamento dialético de Paulo Freire possibilita compreender as dinâmicas da realidade e provoca o esforço de superação liberadora da consciência humana. Freire não funda uma teoria mas, sim, a educação como prática da liberdade e expressão objetiva do espírito do homem. Bell hooks, escritora, professora e ativista social, possui em seus escritos confluências com a pedagogia crítica de Paulo Freire, em uma abordagem holística do aprendizado, onde a escola pode ser também lugar de prazer, de liberdade e de reinvenção de novas ideias. Em sua obra “Ensinando a Transgredir: A educação como prática da liberdade”, a autora usando exemplos pessoais, argumenta que as crianças acessam conhecimentos complexos de forma prazerosa, na medida em que esses têm relação com a vida, colocam em dúvidas diversos aspectos que na vida adulta.
Afirma “essa teoria nasce do concreto, de meus esforços para entender a vida cotidiana, de meus esforços para intervir criticamente na minha vida e na vida de outras pessoas. Meu esforço e minha capacidade de aprender sempre eram contextualizados dentro da estrutura de experiencia das várias gerações da família.” (2017, p. 11) A teorização de uma educação para a liberdade passa a ser, para esses dois pensadores – Feire e bell hooks – uma forma de pensar a existência, um lugar onde se pode imaginar futuros possíveis, um lugar onde a vida pode ser diferente; experiência “vivida” de pensamento crítico, de reflexão e análise. Como nos ensina bell hooks, “fundamentalmente, essa experiência me ensinou que a teoria pode ser um lugar de cura.” (2017, p85) Com isso, o projeto pedagógico/2019 da Escola Aldeia encontrou no movimento tropicalista tema acessível e significativo para as crianças em prática de liberdade. O tema, como lugar de cura e de desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo em busca do tratamento de feridas individuais ou sociais. A experiência de aprendizagem vivida conectada a processos de autorrecuperação ou libertação coletiva. É uma maneira que criar na comunidade escolar motes em que todos se interessam pelas discussões, pois sentem que os conteúdos discutidos possuem vínculos e respondem a inquietações de suas próprias vidas. Com certeza, a fruição entre o pessoal e o cotidiano para o conteúdo escolar permite potencializar a capacidade de aprender. A prática da liberdade, engajada com o bem viver, só entrará adequada expressão numa pedagogia em que o sujeito tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se, conquistar-se como autor e protagonista de sua própria destinação histórica. Como nos esclarece bell hooks: “A academia não é o paraíso. Mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado.
A sala de aula com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de possibilidades. Nesse campo de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade.” (2013, p.273) Em meio a um cenário político conservador com a ascensão de forças que desprezam a liberdade e a autonomia de pensamento através do controle e da submissão das ideias e dos ideais, dentro e fora das escolas, Paulo Freire e bell hooks, nos convocam a exercícios de liberdade. Assim como eles, a Aldeia acredita e luta por uma educação que rompe fronteiras, que faça sentido para as crianças, que tenha um caráter transformador e libertador. O projeto “Cultores, Cantares e Festejos Populares”, com o tema: OS AVESSOS DO AVESSO: TROPICÁLIA promoveu ações de liberdade e de desconstrução. Fugiu de realidades cartesianas, da lógica binária, do certo ou errado, dos estigmas, dos rótulos, do “normal” e do “anormal”. Enfim, foi pano de fundo para um fazer engajado, para uma pedagogia da transformação, de abertura para o novo, para o vir a ser constante, para aquilo que não é, mas pode ser. Sim, é possível sonhar, realizar e ser autor da sua própria história.
“Eu não espero pelo dia
em que todos os homens concordem.
Apenas sei de diversas harmonias
bonitas possíveis sem juízo final.”
Caetano Veloso
Na Aldeia, através do Projeto “Cultores, Cantares e Festejos Populares”, com o tema: OS AVESSOS DO AVESSO: TROPICÁLIA vivemos de perto a energia desse movimento cultural, experimentando os acordes e a poética que expressam a beleza e a irreverencia daqueles dias. Nos deparamos com imagens carregadas de elementos que nos convidaram para a criatividade, liberdade e para a ação/transformação.
A energia tropicalista nos fez reviver fachos de reencantamento. Reencantamento que não foi uma volta a um passado, mas à intensidade daquilo que o presente pode nos oferecer como possibilidade de beleza, de transgressão e de ação.
Saber do passado, conhecer uma existência transformadora, rica e colorida, refletir sobre como os brasileiros conquistaram sua identidade, como engrandeceram sua cultura, nos alimentou e alargou em proporções significativas, existenciais e humanas: cantar, dançar, brincar e saborear as alegrias, lutas e glórias de morar em um país Tropical.
Justificativa
Parece ser consensual que atravessamos uma crise. Não só econômica ou social. É algo bem maior, trata-se de uma crise civilizatória. Uma crise ética que, sobre tudo, impõe à sociedade conceitos e valores distorcidos, arruinados, escangalhados. No entanto, este momento de recessão e desequilíbrios tanto pode significar a decadência, o declínio de um povo ou um momento propício para a renovação, para a reinvenção da vida e de nós mesmos. A memória é uma das linhas de força da modernidade, por meio dela podemos nós fazer mais fortes, conscientes e livres.
Nascido sob o regime militar, a Tropicália, movimento cultural brasileiro que surgiu sob a influência de correntes artísticas da vanguarda, misturou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais. O Tropicalismo tinha objetivos políticos e sociais, e fez da experiência estética um instrumento social revolucionário para além da promoção de mudanças políticas. O movimento marcou pela irreverência e pela ironia de suas obras, e provocou transformações não só na música, mas também na moral e no comportamento da sociedade brasileira. Na tentativa de abranger a capacidade dialógica e transformadora dos movimentos culturais e de suas diferentes formas de expressão, no ano de 2019, desenvolvemos o Projeto: Cultores e Cantares da Cultura Popular - OS AVESSOS DO AVESSO: TROPICÁLIA. Circundandos pelos versos e reversos do tema, fomos nos expressando enquanto seres que preenchem o mundo de sentido, mundo social, interativo e cultural que nos transforma e que também transformamos.
Nas considerações de Paulo Freire: Enquanto educadores sabemos todos que a educação não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também que as mudanças do mundo são um quefazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a serviço de nossos sonhos. (1991, p. 126) Reconhecemos o papel que tem uma Aldeia para a sua comunidade, mas também reconhecemos nossas limitações, pois são muitas as estruturas sociais e econômicas dominantes, que impedem as transformações. É nesse sentido que Paulo Freire é enfático ao afirmar que “a transformação da educação não pode antecipar-se à transformação da sociedade, mas esta transformação necessita da educação” (1991, p. 84).
Agimos enquanto comunidade, inserindo pais, professores, demais educadores e alunos que dela participam. As experiencias são vividas e sofrem transformação na medida em que, juntos, criamos uma atmosfera onde situações e concepções podem ser questionadas de forma legítima em um exercício de desapego a estruturas rígidas, através de um intercambio ético, crítico e estético. Assim, a educação é compreendida como instrumento a serviço da democratização, no diálogo, para formar pessoas ativas e participantes. A reforma da educação e a reforma da sociedade andam juntas, sendo parte do mesmo processo. Também a verdade é que transformações, trocas e transfigurações estão ligadas à sociedade e à história do Brasil e dos brasileiros.
Sendo assim, enquanto seres desejantes de transformação, de conhecimento, de arte, de cultura, professores e alunos da escola Aldeia, se debruçaram sobre o percurso ético e estético dos tropicalistas em suas agudas provocações e estilo através de pesquisas, diálogos com os colegas e obras que contém diferentes aspectos desse movimento. Música, dança, pintura, expressão corporal reavivaram e mantiveram acesa a chama de superação de nós mesmos, em nossas dúvidas, inquietações e desejos, nos fazendo cada vez mais zelosos da nossa brasilidade. Ao nos aproximarmos das concepções da Tropicália, em intimidade com o movimento, fomos provocados, entramos em contato com as subjetividades e singularidades desse tempo/espaço. Assim, sob a luz das linhas e entrelinhas do Tropicalismo, de suas cores, sons e energia, ganhamos mais pujança, ardor e consciência para atuarmos na construção ou reinvenção de um Brasil melhor e mais bonito.
Tropicalismo: explosão ou implosão
Toda a Aldeia descobriu a importância histórica do Tropicalismo a partir de uma perspectiva histórica sem nos restringir aos lugares-comuns que dominam o tema. Não foi uma tarefa muito fácil, até porque, em larga medida, somos tributários, cultural, política e esteticamente, daquela tradição cultural iniciada entre 1967 e 1968. Para Paulo Freire o saber precisa ir além do saber circundante, “saber melhor significa precisamente ir além do senso comum a fim de começar a descobrir a razão de ser dos fatos [...] começando de onde as pessoas estão, ir com elas além desses níveis de conhecimento sem transferir o conhecimento (2003, p. 159). Os alunos do 5º Ano do ensino fundamental assistiram ao documentário “Tropicália” de Marcelo Machado. O tema se ampliou em imagens e diálogos significativos. As crianças se emocionaram com a força utópica de um movimento que aconteceu durante a ditadura brasileira, período em que pensar era quase um crime. Se envolveram a ponto de se organizarem para representar para as crianças da Educação Infantil, canções iluminadas de sol e a felicidade livre e guerreira dos tropicalistas. Ao final, as crianças compreenderam que a alegria pode coexistir com o trabalho duro.
Toda Aldeão, ao tratar de um movimento de grande amplitude como o tropicalismo, se aproximou da própria história. Juntos, desenvolveram atividades que possibilitaram a conexão com o próprio passado. As crianças foram aprendendo a cantar as mesmas músicas cantadas por seus pais, avós... e dançaram juntos. Se descobriram nascidos, criados, formados e deformados no e pelo Brasil! O repertório musical se transformou em um registro de identidade e de alegria.
Os alunos conheceram bem de perto Caetano Veloso, considerado um dos fundadores do movimento do Tropicalismo, que, em 1967, revolucionou a Música Popular Brasileira. Compreenderam como o movimento pretendia instaurar uma nova atitude e como a intervenção do artista na cena cultural do país foi, antes de tudo, uma crítica. Os avós das crianças, contemporâneos de Caetano, viviam em plena Ditadura Militar, e dentro desse contexto, avós e netos, cantaram juntos a música Tropicália, composta por Caetano na época para representar uma contundente necessidade de liberdade de expressão para criar e criticar. Professores e alunos se atentaram as metáforas das músicas, e brincaram com a forma com que os artistas do movimento manifestaram sobremaneira seus desejos de crítica e de liberdade. Encontraram, nas músicas, muitas metáforas e, juntos fizeram tentativas de identificarem o que representavam.
Conheceram, também, Hélio Oiticica e tiveram através do Parangolé, contato corporal rico em experiências sensoriais. Considerado um dos maiores artistas da história da arte brasileira, Hélio Oiticica, é reconhecido por sua produção inovadora, de extrema vanguarda, política e de caráter experimental. O artista propõe uma arte que busca uma abertura ao e do participador, através de experiências que promovam uma volta do sujeito a si mesmo, redescobrindo-se, libertando-se dos condicionamentos morais e estéticos, impelindo-o a um estado criativo, uma vivência sensível em relação ao espaço que ocupa. Para os alunos da Aldeia, o tropicalismo revelou-se transgressoramente inovador ao mesclar aspectos tradicionais da cultura nacional com inovações estéticas ostensivamente importadas, como a “pop art”. Também inovou ao possibilitar um sincretismo entre vários estilos musicais originalmente heterogêneos como o rock, a bossa-nova, o baião, o samba e o bolero. As crianças tiveram várias oportunidades de experimentarem e dialogarem sobre esse sincretismo.
Perceberam como essa mistura nos enriquece e identifica. Um dos momentos mais apreciados pelos alunos, foi a descoberta da divergência em relação à influência estrangeira. Durante e tropicália, para a ala mais conservadora, a presença da guitarra representava a invasão da cultura pop estrangeira. Para outros, era uma necessidade de incorporar novas tendências musicais. Durante as aulas de música, foram convidados a vivenciarem como Caetano Veloso e Gilberto Gil fizeram de maneira crítica, ou de maneira antropofágica, algumas músicas. Como propunha Oswald de Andrade, devoraram o elemento estrangeiro e produziram novos sons. Os alunos dialogaram sobre a forte influência da cultura “pop-rock” americana, e se essa interferência foi ou não uma invasão cultural. Muitas crianças se posicionaram de forma diferente como é próprio de um dialogo dialético. Como resultado dessa discussão, as crianças do Infantil 2 e 3 anos dançaram um Forró Tropicália para lá de divertido.
O ser humano vivencia através da arte, da história, da cultura a transfiguração de sua existência. Para Paulo Freire, a educação é um ato de amor e coragem, sustentada no diálogo, na discussão, no debate. O que requer olhar para nossa história, nossa força e capacidade de amar, cantar e transformar a vida. A história é um processo de participação, de união para movimentos de transformação. A Tropicália é um tempo/espaço privilegiado para sonhos e utopias. Quanto mais os alunos foram capazes de refletir sobre o tema, mais ganharam consciência do poder que o movimento ganhou, agindo, ainda hoje sobre eles. As crianças se sentiram inseridas e participantes dessa história. Segundo Freire é preciso conferir ao humano o direito de dizer sua palavra. Para os Aldeões, essa Palavra música pode ser ativa e transformadora. E foi essa força e liberdade que, ao final do projeto, demostraram no palco, contando, dançando, se divertido...livres para ser, viver e aprender.
Bibliografia
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Freud, S. (1996). Escritores criativos e devaneios. Em Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, IX (pp.133-143). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908).
Vídeo ilustrativo do projeto contendo demonstração do método, técnicas, os sujeitos participantes, a instituição e os resultados obtidos. https://www.youtube.com/watch?v=Co8GY7oApGQ
Rodrigué, E. (-----). A psicanálise com crianças. Em M. A. M. Fernandes (Org.), Quando uma criança precisa de análise? (pp. 87-99). São Paulo: Casa do Psicólogo.
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