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Qual momento certo para falar sobre sexualidade com as crianças?

São muitas as conjunturas relacionadas à primeira infância e ao processo de ser pai e mãe. Com base nessa premissa, muitos estudos têm sido feitos procurando compreender como se constrói, no seio da família, a educação e socialização de uma criança. Muitas vezes, nos vemos sozinhos neste lugar de "criar" filhos.

No desejo de "tecer" um espaço de encontro com a comunidade, Ana Valéria, especialista na área de parentalidade e produtora do @cometogetheness, criou o projeto "Fala Comigo" com apoio da Escola Aldeia, na intenção de fortalecer laços para conversar, refletir, pensar, respirar sobre temas pertinentes a família e as belezas e angústias que compõem a função parental. Elos afetuosos e firmes na defesa de uma parentalidade mais leve, real e de uma infância mais saudável.

Partindo de ideais socialmente instituídos, constatamos que a presença da sexualidade na criança tende a ser tratada pelo adulto com certa resistência. O adulto frequentemente faz uso de inverdades por meio de histórias fantasiosas para omitir ou adiar o esclarecimento das curiosidades apresentadas pelas crianças, sejam elas sexuais ou sobre a morte.

Freud (1907/1992), em “Esclarecimento Sexual das Crianças”, afirma que um recém nascido já vem ao mundo com a sua sexualidade e poucas crianças alcançam a puberdade sem ter experimentado sensações e atividades. A ignorância teórica que leva os adultos a ocultar os assuntos sexuais das crianças se deve a uma pudicícia e má consciência daqueles em relação a assuntos sexuais, o que apenas contribui para criar um mistério diante das crianças. Esse mistério também é incentivado pelos adultos quando a morte está em questão - algo parecido com isso acontece quando a criança se confronta com a morte de uma pessoa próxima - a percepção da morte no início da infância é distinta da percepção dos adultos.

A partir de uma conversa aberta e transparente acreditamos que podemos, juntos, apurar um conceito de criança que se desprende da preocupação em utilizar uma imagem ingênua para corrigir ou desculpar o homem, como propõe o conceito forjado pelos moralistas e religiosos, ou mesmo na criança proposta por Rousseau. Nossos filhos são crianças inteligentes, que não se encontram paralisadas diante dos mistérios que os adultos persistem em manter e, assim, são capaz de perscrutar e teorizar para compreender o mundo ao seu redor. Com sua inteligência, o pequeno infante é capaz de se favorecer com os mistérios que ele sabe que os adultos lhe impõem. Nessa inquietação podemos encontrar o embrião que move importantes pesquisas que esses infans possam vir a realizar em sua vida adulta e revelam uma intelectualidade, sendo constituída.


Abertura:


A descoberta do mundo – Clarice Lispector


O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu quereria poder usar a delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva. Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais. Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesma, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta, então. Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube de coisas que nem eu mesma sei que sei. As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezasse e à minha ignorância. Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência. Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo: que eu era ignorante e fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia antes fingido. Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era uma menina e não soube falar de um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? mas para quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar. Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos namoros. Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez. Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizar-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios. Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino.

Pois juro que a vida é bonita

IN: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, pág.157-159


Orientação Sexual e o Papel da Escola


O papel da Escola é dar orientação sexual ao aluno e não educação sexual, o que fica a cargo da família, seus valores, suas crenças. Querendo ou não, é na escola que surgem as mais diversas situações nas quais o educador é chamado a intervir, e para falar sobre orientação sexual é necessária linguagem clara, objetiva e direta.


Veja o que diz Foucault sobre a história da sexualidade. “A sexualidade é uma fonte de amor pela vida, uma forma definitiva de afirmação diante de si mesmo, dos outros e do mundo. A sexualidade domina toda a atividade humana desde a arte, a literatura, o cinema, a imprensa e a televisão. A sociedade precisa adotar atitudes positivas em relação ao sexo, pois não falar sobre sexo, gera alienação. Caso isso ocorra, a Escola se colocará na contra-mão do esclarecimento e consciência própria. O sexo é colocado, na Escola, como um conceito amplo de relacionamento entre seres humanos num contexto bio-psico-sócio-cultural. A orientação sexual não tem caráter de aconselhamento individual do tipo psicoterapêutico.”


Outros Textos usados



- Pequeno lembrete baseado no texto de referência do Freud -

FREUD, S. (2006).Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago Editora. O Esclarecimento Sexual das Crianças. (1907)

A priori, a carta se inicia com a ideia básica da teoria freudiana acerca das neuroses: “a constituição psicossexual e certos males da vida sexual são as causas primordiais das perturbações neuróticas”. Quesitos: 1) Devem as crianças ser esclarecidas sobre os fatos da vida sexual? 2) Em que idade isso deve ocorrer? 3) De que modo isso deve ser realizado? “Encontrei na correspondência familiar do grande pensador e filantropo Multatuli, algumas linhas que constituem uma resposta mais que adequada: “A meu ver, certas coisas são, em geral, exageradamente encobertas. É justo conservar pura a imaginação de uma criança, mas não é a ignorância que irá preservar essa pureza. Ao contrário, acho que a ocultação conduz o menino ou menina a suspeitar mais do que nunca da verdade. A curiosidade nos leva a esmiuçar coisas que teriam pouco ou nenhum interesse para nós, se tivéssemos sido informados com simplicidade. Se fosse possível manter essa ignorância inalterada, eu poderia aceitá-la, mas isso é impossível. O convívio com outras crianças, as leituras que induzem à reflexão e o mistério com que os pais cercam fatos que terminam por vir à tona, tudo isso na verdade intensifica o desejo de conhecimento. Esse desejo, satisfeito apenas parcialmente e em segredo, excita seu sentimento e corrompe sua imaginação, de forma que a criança já peca enquanto os pais ainda acreditam que ela desconhece o pecado”.” Primeira infância - período de autoerotismo(termo introduzido por Haverlock Ellis1898) – período da vida, durante o qual uma certa cota do que é prazer sexual é produzida: 1) Pela excitação de várias partes da pele (zonas erógenas); 2) Pela atividade de certos instintos biológicos; 3) Pela excitação concomitante de muitos estados afetivos. “A puberdade apenas concede aos genitais a primazia dentre todas as outras zonas e fontes produtoras de prazer, assim forçando o erotismo a colocar-se a serviço da função reprodutora”. (acasalamento x reprodução) Durante este processo de constituição psicossexual, as INIBIÇÕES podem levar as pessoas a se tornarem, mais tarde, pervertidas ou neuróticas.

As crianças já são capazes das manifestações psíquicas do amor (v.g.: a ternura, a dedicação e o ciúme). Com frequência, esses sentimentos associam-se às sensações físicas de excitação, então a criança faz a conexão entre ambos. É importante que a criança apreenda intelectualmente as atividades para as quais já está psiquicamente preparada e fisicamente apta. Quando a criança não sofre intimidações e nem é oprimida por nenhum sentimento de culpa, ela expressa candidamente aquilo que pensa. Ao contrário disso, a curiosidade pode ser aflitiva, gerar angústia (meditação obsessiva). A neurose pode brotar a partir de perguntas inconscientes não respondidas (da meditação obsessiva). Portanto, Freud conclui que não há razão para negar às crianças o esclarecimento exigido pela própria curiosidade (“sede de saber”). Para Freud, com certeza os piores caminhos trilhados pelos adultos são: 1) A ludibriação em questões sexuais, e; 2) a intimidação pela religião. É provável que, através destes dois caminhos os jovens se tornarão rebeldes contra a autoridade dos pais e mais tarde, a qualquer outra autoridade. “Se as dúvidas que as crianças levam aos mais velhos não são satisfeitas, elas continuam a atormentá-las em segredo, levando-as a procurar soluções nas quais a verdade adivinhada mescla-se da forma mais extravagante a grotescas falsidades, e a trocar entre si informações furtivas em que o sexo é apresentado como uma coisa horrível e nauseante, em consequência do sentimento de culpa dos jovens curiosos”. Primeiras dúvidas da criança em relação ao sexo: 1⁰) O problema da origem dos bebês (geralmente despertado pelo indesejado nascimento de um irmão); Mitos e lendas relacionados: enigma que a Esfinge de Tebas apresenta à Édipo. “As respostas usualmente concedidas à criança danificam seu genuíno instinto de investigação e, via de regra, também desfere o primeiro golpe na confiança que ela deposita em seus pais.” – geralmente depois desta data começam a desconfiar dos adultos e a esconder deles seus interesses mais íntimos. “A curiosidade da criança nunca atingirá uma intensidade exagerada se for adequadamente satisfeita a cada etapa de sua aprendizagem”. 2⁰) O problema da distinção entre os sexos; É importante que as crianças nunca sejam levadas a pensar que desejamos fazer mais mistério dos fatos da vida sexual do que de qualquer outro assunto ainda não acessível à

sua compreensão. Inicialmente é necessário que todo assunto relacionado à sexualidade seja tratado como os demais fatos dignos de conhecimento. Os fatos básicos da reprodução e sua significação deviam na lição sobre o reino animal (questão pedagógica – ensino formal). Não devemos refrear diretamente o pensamento infantil com intimidações. Segundo Freud, “em torno dos dez anos de idade a criança deveria ser esclarecida sobre os fatos específicos da sexualidade humana e sobre a significação social desta”. A época da confirmação (fase genital – puberdade - adolescência) a criança já deverá ter um completo conhecimento acerca de todos os fatos físicos. A partir disso, esta (puberdade) seria a época mais adequada para instruir a criança sobre as obrigações morais que estão associadas à satisfação real do instinto (pulsão)”


Referências:

ANDRADE, Mário de. Contos Novos. Quarto de Despejo;

ANDRADE, Mário de. Contos Novos. Frederico Paciência;

COLE, Babette. Mamãe Botou um Ovo.

DOLTO, Françoise. Os Caminhos da Educação.

FREUD, S. (2006).Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago Editora. O Esclarecimento Sexual das Crianças. (1907)

SUPLICY, Marta. Falando Sobre Sexo.

VALLADARES, K.K. 2001. Sexualidade na Escola.






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