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A ética e a estética de educar

Carolina N. Curado Parrode 0000-0001-9914-3180

Fátima Cristina Silva Moraes 0000-0003-1488-7434


Resumo: Qual a importância de uma educação decolonial? Para atender a letra da lei mas, antes, por uma formação ética. A reflexão sobre o valor normativo de certas culturas, decretado unilateralmente, merece que lhe prestemos atenção. No entanto, importa a forma como nos debruçamos sobre o tema e o colocamos em prática com as crianças, sempre por uma via estética e não estereotipada, aquilo que chamamos educação estética. A perspectiva decolonial requer um olhar sobre enfoques epistemológicos/metodológicos que coloca como central as subjetividades subalternizadas e excluídas; supõe interesse por produções de conhecimento distintas daquelas oriundas da modernidade ocidental. O presente texto apresenta trabalho executado com as crianças, pela escola Aldeia onde atuamos em defesa do ambiente escolar como espaço de inovação, decolonização de mentes e zelo pela integridade emocional das crianças e seus professores. A Aldeia compreende a Educação como prática da liberdade e a escola como ambiente de questionamento. Palavras Chave: Decolonialidade. Educação estética. Escola.


Introdução

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205, conta-nos que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para ao trabalho”. Desta feita, um currículo que atenda restritivamente a base sem levar em consideração as complexidades que envolvem as áreas do conhecimento, não consegue atender os três aspectos citados na Constituição, a saber, desenvolvimento da pessoa, exercício da cidadania e preparo para atuação econômica. Isso porque educação não pode ser tratada como mera instrução, já que o acesso a ela é uma das formas de realização concreta do ideal democrático. Sabe-se que a educação pode ser uma atividade que reforça as desigualdades, ou pode contribuir para desvelar as contradições das estruturas sociais, política e econômica numa perspectiva de emancipação humana diante da lógica da contradição. Observamos, em 2003, mudanças nas políticas educacionais mediante a reformulação dos currículos com a implantação da Lei 10.639/03 a qual torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira. A partir de então, toda a instituição assume ou deveria assumir o compromisso de elaboração de um currículo decolonial, o que implica compromisso com uma educação não sexista e antirracista, a fim de perseguir maior compreensão da sociedade, na sua faceta mais diversa e complexa, o que faz parte da formação de seres humanos inteligentes, criativos e inovadores. A educação decolonial no ensino básico prepara as crianças para reflexão, compreensão, questionamento e solução de problemas complexos do nosso tempo. Um currículo decolonial colabora para a formação da criança, engrandece sua inteligência emocional e a habilita para a lida criativa com os antagonismos, belezas e adversidades do mundo(figuras 1 e 2). A perspectiva decolonial requer um olhar sobre enfoques epistemológicos e metodológicos que coloca como central as subjetividades subalternizadas e excluídas. Supõe interesse por produções de conhecimento distintas daquelas oriundas da modernidade ocidental. Segundo Ana Célia Silva (2011) “(...) As narrativas contidas nos currículos explícita ou implicitamente corporificam noções particulares sobre conhecimento, formas de organização da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais, sobre a sexualidade. Essas narrativas são potentes. Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo, o que é errado, o que é moral, o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes estão autorizadas a falar e quais não o são. São silenciadas.”



Assim, em resposta às nossas indagações tal como as mencionadas neste artigo, como educadoras, nos dedicamos ao desenho dos princípios básicos capazes de sinalizar uma imagem conceitual plausível para uma educação ético-afetiva das crianças. Educação esta, orientada a se assumir como plano de experimentação, aberta ao devir, às relações sensíveis, imaginativas e intelectuais que articulam social e culturalmente o ato de aprender e ensinar. Nosso esforço é o de colocar em discussão os imperativos de uma educação pautada em preceitos e práticas que tentam não eliminar ou minimizar, mas estabelecer uma relação atenta e sensível com as diferenças que o mundo moderno forçosamente nos impõe. É por isso que nos empenhamos no letramento racial para crianças pequenas e na realização deste feito a partir de uma a concepção coletiva e um plano curricular ético e afetivo (figura 3).


Assentamento estético “Mil nações moldaram minha cara, Minha voz, uso para dizer o que se cala, O meu país é meu lugar de fala.” (Elza Soares, 2018) Ao considerarmos um currículo decolonial, não podemos deixar de narrar a forma como, muitas vezes, as escolas praticam os calendários de festividades. Não é exagero chamar o que acontece, ano após ano com as crianças, de “indústria das festas”. Um conjunto de práticas pedagógicas sistemáticas sem o menor significado. Episódios soltos, fragmentados, reducionistas, cheios de estereótipos e caricaturas. Sete de setembro? Exércitos mirins marchando com chapéus de papel. Páscoa? Orelhas de coelho enfeitadas de algodão. Em abril é o festival de apaches, com 3 riscos na bochecha e uma pena na cabeça. Em novembro transformam o continente africano em um país unívoco, homogêneo, representado por crianças vestidas de aborígenes ou de zebras, girafas e leões. Agem como se essas fossem homenagens às nossas raízes – sejam elas cívicas, culturais, indígena, africana. Resta um questionamento: estas ações pedagógicas são coerentes com uma educação em prol da conscientização da comunidade escolar sobre a importância histórico-cultural das datas comemorativas? Como se processa o aprender e ensinar no conflito das transformações? Desta pergunta desdobram as seguintes questões: como se realizam os processos educativos mediados pela escola, família, religião, trabalho, mídia, mitos, festas, tabus, rituais, danças e todas as manifestações culturais de nosso tempo? Como se dá a tensão, a intersecção e a fricção entre tradição e modernidade? Quais são seus reflexos nos processos de ensino-aprendizagem? Polarizar e problematizar esta questão, transformando-a em uma discussão simplista entre ser moderno ou tradicional é cair num reducionismo irracional, que se traduz em interpretações equivocadas da realidade. Uma das principais consequências disso é a replicação de visões estereotipadas, caricatas, preconceituosas, distantes, desumanizando o “outro” e reproduzindo uma sociedade cada vez mais desigual, ignorante, unívoca e padronizada. Não acreditamos que seja essa a sociedade que as famílias e as escolas queiram para o futuro, para o agora. Daí a necessidade de uma educação decolonial. É indispensável que a escola seja o lugar do exercício de pensar e, consequentemente, da reflexão sobre a sociedade na qual está inserida. A sociedade está consumida por pessoas obedientes e conformadas com as agruras da realidade. Pessoas incapazes de questionar e de propor mudanças. A vida pede qualidade estética, requer cidadania pujante e ativa. Uma escola crítica e transformadora da realidade, mais do que nunca, tem que se fazer real. Atuar com coragem e compromisso em prol do crescimento humano em valores, ética e justiça para encontrar uma maneira melhor de viver e desejar. Haja forças para tanto! (figuras 4 e 5).



A escola Aldeia acredita que a educação transforma vidas, o futuro contem nossa criança de agora e educar é fundar uma utopia. Não é de modo algum se entregar a um doce devaneio, mas pensar espaços do real a serem alcançados por meio do pensamento e da ação. É estar atento aos sinais e seus germes no tempo presente a fim de fomentálos. Escola é centro comunitário que se presta a uma utopia ativa, que se atribui a tarefa de trazer à luz os vastos espaços do possível e fecundá-los. Assim, fazer uma educação decolonial a partir da alteração de nossa relação com o mundo eurocentrado, dos hábitos que adquirimos com a “modernidade” e, todas essas questões. Além de decifrar as dinâmicas mundanas em curso, pensar projetos de sociedade, analisar o papel da cultura nessas mutações, empreender uma reflexão prospectiva. Isso porque estar na escola trata-se de também pensar um projeto de civilização que abarque o outro, que reconheça diferenças culturais e proponha uma harmonia possível entre as distintas ordens (econômica, cultural, jurídica, espiritual, política, social). Precisamos nos enriquecer com vozes diversas partindo de outros e diferentes solos, ser atravessados por distintos afetos. Nossa utopia é imaginar e realizar um canal de comunicação intermundos. Educação decolonial: como embasar e instrumentalizar a nossa? O nacional na formação da imaginação brasileira é postiço, artificial. Como desconstruí-la e recompola? Carlos Drummond de Andrade dizia que precisamos descobrir o Brasil. Vejamos: Precisamos descobrir o Brasil! Escondido atrás das florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado. Precisamos colonizar o Brasil. O que faremos importando francesas muito louras, de pele macia, alemãs gordas, russas nostálgicas para garçonnetes dos restaurantes noturnos. E virão sírias fidelíssimas. Não convém desprezar as japonesas Precisamos educar o Brasil. Compraremos professores e livros, assimilaremos finas culturas, abriremos dancings e subvencionaremos as elites. Cada brasileiro terá sua casa com fogão e aquecedor elétrico, piscina, salão para conferências científicas. E cuidaremos do Estado Técnico. Precisamos louvar o Brasil. Não é só um país sem igual. Nossas revoluções são bem maiores do que quaisquer outras; nosso nossos erros também. E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões… os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas… Precisamos adorar o Brasil. Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão no pobre coração já cheio de compromissos… se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos. Precisamos, precisamos esquecer o Brasil! Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. O Brasil não nos quer! Está farto de nós! Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros? (Carlos Drummond de Andrade, 1940) Os seres humanos não podem viver sem dar sentido àquilo que os cerca; à dimensão simbólica. Precisamos trazer para dentro da escola diferentes contextos culturais, relatos de uma diversidade de narrativas. Fazer ver a beleza, a grandiosidade, a força do povo preto e dos povos indígenas; compreender de forma crítica os interesses, em diferentes épocas e situações, das narrativas de determinados grupos hegemônicos (políticos, econômicos), para manutenção ou ampliação do poder sobre o outro. Contar outra história de natureza contra-hegemônica, alimentá-la, recriá-la e ressignifica-la. Assimilar ao vieses das narrativas de constituição de nossa identidade brasileira, seja ela mítica ou histórica. O Brasil-colônia sofreu um processo severo de espoliação das suas riquezas e junto à isso, um enaltecimento da cultura européia. Qual é o não-lugar dos povos indígenas e dos negros nessa história? Qual é o nosso não-lugar? Onde estão os pretos e os indígenas para contar? Na escola Aldeia estão à frente da sala de aula, transferindo quem são e ensinando o que sabem. (figuras 6 e 7)



Encontro de saberes e descolonização

A educação é uma ação. Transmitir-se é a prática de um poder humano, que só pode ser exercido na liberdade e nunca como resultado de uma fórmula pronta, centrada do professor. Assim como o amor, educar é uma atividade e não um afeto passivo; é um erguimento e não uma queda. Portanto, para que a coloquemos em prática os anseios legais acerca de uma educação decolonial, todo o material pedagógico é produzido artesanalmente, de forma transdisciplinar e contextualizada (apêndice 1). História, ciências, matemática, língua portuguesa, geografia e demais áreas do conhecimento ensinados com a complexidade e interface que merecem. E tudo isso é realizado em meio a uma comunidade de privilegiados, no centro-oeste do Brasil, em tempos de governos autoritários e onde a Educação pode acabar por se apresentar como instrumento patologicamente estabilizador de uma dada ordem e visão de mundo. Enfim, a seara é essa! Figura 7 – Professora Ms Danúbia ministrando aula de Educação Pluriversal. Fonte: acervo Escola Aldeia, 2021 Uma escola que se propõe a construir um currículo decolonial, precisa acolher a complexidade humana como sua maior riqueza e ser capaz de transportar para suas práticas, na lida diária com as crianças. Precisa propor atividades e ações que vão, aos poucos, desvelando os conhecimentos necessários sobre os temas e, ao mesmo tempo, proporcionando conscientização. Retirando camadas que foram construídas por gerações e gerações de ‘naturalização’ de privilégios. Ora, visto que essa tarefa só pode ser solucionada através do jogo estético, as educadoras da Aldeia se dedicam então a ensinar via arte e literatura. Contemplando artistas, intelectuais e literatos pretos e indígenas que partem de uma lógica diversa da apresentada pelo mundo moderno eurocêntrico e passa bem longe dos estereótipos que estamos acostumados a ver nas instituições de educação, como por exemplo, em datas comemorativas em abril ou novembro. A instituição de educação nos parece um ambiente adequado, já que é o lugar de transmissão de cultura e conhecimento em nosso país e, ainda mais, bem sabemos que todas as complexidades do contexto familiar acabam, de um jeito ou de outro, escoando por lá, seja sob a forma de sintoma social ou até mesmo de sintomas subjetivos manifestados na própria criança (figuras 8, 9 e 10).




Segundo Morin (2019, p.09) a ciência moderna só pôde emergir na efervescência cultural da Renascença, na efervescência econômica, política e social do Ocidente europeu dos séculos 16 e 17. Desde então ela se associou progressivamente à técnica, tornando-se tecnociência, e progressivamente se introduziu no coração das universidades, das sociedades, das empresas, dos Estados, transformando-os e se deixando transformar. Em atenção à exortação de Morin, a Aldeia constrói sua metodologia a partir de uma prática teorizada. As atividades são elaboradas respeitando o entrelaçamento entre teorias do desenvolvimento humano e práticas educativas; tudo isso levando em consideração as demandas da comunidade, os processos sócio-históricos e contemporaneidade. A reformulação das ações e estratégias se dá de maneira constante e em decorrência dos frutos colhidos, dos estudos de casos, das atividades propostas pois sabe-se que não existe exatidão possível quando o assunto é educação. Esta é uma ciência complexa porque é inseparável de seu contexto histórico e social – assim como toda ciência. A ciência não é científica. Sua realidade é multidimensional. Os efeitos da ciência não são simples, são profundamente ambivalentes. A ciência é intrínseca, histórica, sociológica e eticamente complexa. É essa complexidade específica que se reconhece como salutar, na escola Aldeia,. Portanto, acolhe-se a complexidade como riqueza maior e a transportamos para a lida diária com as crianças. (figuras 11 e 12)




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